Por Paula Barcellos e Laís Helena de Mello Pontim / Jornalistas da Revista Emergência
Dia 27 de janeiro de 2023 marca os dez anos da tragédia da boate Kiss, que matou 242 pessoas e feriu outras 636, na cidade de Santa Maria/RS. O acidente que ceifou a vida de muitos jovens, em sua grande maioria, foi assunto mundial e causou um marco para a Segurança Contra Incêndio brasileira.
Na semana em que o incêndio completa uma década e é relembrado em debates, séries e reportagens, Emergência traz as opiniões de especialistas sobre as mudanças que ocorreram, ou não, na prevenção e no combate a incêndio no país em âmbito técnico e cultural após a tragédia. Os entrevistados também falaram sobre o que é necessário para que acidentes semelhantes nunca mais ocorram.
LEGISLAÇÃO
Entre as mudanças, a alteração na legislação é um ponto forte após a Kiss, segundo os entrevistados. “Infelizmente, a sociedade só reage diante de grandes tragédias, como foi o caso da Kiss, e no século passado o incêndio do edifício Joelma e Andraus, em São Paulo. Houve uma maior conscientização do mercado como um todo. Tivemos alterações na legislação do corpo de bombeiros na grande maioria dos estados do Brasil, focando em maior exigência de equipamentos, controle de materiais de acabamento e revestimento e saídas de emergência. Hoje os corpos de bombeiros estão mais exigentes, fazendo com que os profissionais da área de incêndio sejam mais bem capacitados e especifiquem equipamentos de qualidade, com as devidas certificações. Já os clientes, responsáveis pela contratação dos serviços, mudaram a forma de contratação, hoje eles dizem: ‘ quero o melhor’ e não mais ‘quero o mais barato’, uma mudança total de paradigma”, reflete a engenheira Diana de Araujo, diretora da ABSpk (Associação Brasileira de Sprinklers).
Para Marcelo Lima, diretor-geral do ISB (Instituto Sprinkler Brasil), a boate Kiss foi um divisor de águas para diversas questões na área de incêndio por causa da proporção e de todas as falhas que foram identificadas, com destaque para o aspecto legislativo. “Eram falhas desde o ponto de vista da legislação ao uso de materiais, aos vícios de fiscalização e à mentalidade dos empresários. Então, a primeira questão muito importante após a tragédia foi a atualização da legislação de incêndio em vários estados brasileiros e muitos deles fizeram isso utilizando a legislação de São Paulo como base. Isso teve um efeito bom por atualizar a legislação em estados como Rio Grande do Sul e Bahia. A Bahia, por exemplo, não tinha uma legislação estadual até essa época, sendo criada por causa da tragédia da boate Kiss”, revela Lima. Em decorrência de a maioria dos estados seguirem a legislação de SP como base, houve ainda um efeito secundário positivo, conforme o diretor. “Um efeito que talvez não tenha sido planejado, mas que aconteceu, é a uniformização de muitos requisitos, o que facilita a maneira de se proteger contra incêndio em vários estados. Hoje em dia no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia, seguindo para o Centro Oeste também, a base da legislação é a mesma. Imagine uma rede de supermercados que tem unidades no Brasil inteiro, ela não precisa fazer projetos diferentes para estados diferentes”, explica.
Segundo Lima, outro destaque após o acidente é em relação às normas técnicas, cuja quantidade de novas ou de textos revisados é bastante grande atualmente.

CULTURA
Outra mudança positiva, segundo o diretor-geral do ISB, é o fortalecimento da cultura de segurança contra incêndio. “O segundo ponto muito bom é o que sempre acontece depois dessas tragédias: de colocar na cabeça das pessoas que incêndio é um perigo. Vejo hoje em dia que o tema incêndio ganhou uma outra importância na sociedade, na imprensa, na vida em geral. As pessoas ficaram mais conscientes do problema de incêndio e acredito que todo mundo sentiu que de dez anos para cá houve uma mudança realmente geral no clima da área de proteção contra incêndio”, avalia Lima.
A coordenadora do GSI (Grupo de Fomento à Segurança contra Incêndio), Rosaria Ono, acredita que a tragédia da Kiss resultou em mais cobranças por responsabilidades. “Creio que houve uma grande mobilização da sociedade brasileira no sentido de exigir uma maior responsabilização dos gestores das edificações e das condições de segurança oferecidas aos seus ocupantes. Normas foram revistas, novas leis e regulamentações foram criadas tanto para estabelecer responsabilidades civis e criminais, como também para exigir o atendimento de requisitos técnicos de segurança contra incêndio em edificações de grande concentração de público, principalmente”, cita.
FATORES
O superintendente do CB-024 (Comitê Brasileiro de Segurança Contra Incêndio) da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) e membro da ABPP (Associação Brasileira de Proteção Passiva Contra Incêndio), Rogério Lin, ressalta uma evolução na área após a tragédia. “Podemos destacar que avançamos sim alguns passos nestes últimos dez anos. A boate Kiss trouxe muita atenção por exemplo para a proibição do uso de artefatos pirotécnicos em casas noturnas e o emprego de materiais de revestimentos de piso, paredes e forros com uma boa reação ao fogo, ou seja, baixa propagação de chamas e emissão de fumaça. Também levantou a atenção com extintores devidamente carregados e sinalização e iluminação de emergência bem localizados e corretamente instalados. Estes foram fatores rapidamente endereçados em regulamentações e fiscalizações Brasil afora”, destaca Lin.
Apesar disso, ele lembra que muitos pontos ainda precisam de uma atenção especial. “Digo isso porque cada incêndio que ocorre é diferente do outro, desde o projeto de uma edificação, da quantidade de materiais combustíveis, da forma como a fumaça viaja e se comporta durante o incêndio, das medidas que ali estão empregadas, da manutenção delas, da integração entre elas, enfim, são centenas, talvez milhares de fatores que fazem com que isso se torne ou não uma tragédia. O ponto que eu chamo a atenção, é justamente para todas as outras edificações que possuem características diferentes e fatores que podem contribuir para um risco de vida quando um incêndio ocorre. Eu listo uma série de preocupações para o Brasil nos próximos dez anos como por exemplo megagalpões industriais, fachadas em sistemas de elementos envidraçados, painéis fotovoltaicos, veículos elétricos e bancos de bateria, edifícios altos e complexos multiuso, edifícios em madeira engenheirada e compósitos empregados em sistemas de fachadas. Estes devem ser endereçados por normas técnicas, amplo debate com a sociedade e que podem melhorar os futuros projetos e corrigir aqueles atuais que representam algum risco à sociedade”, revela.
BUSCA POR MELHORIAS
Embora os especialistas tenham apontado melhorias nesses dez anos, eles também destacam muitos pontos que precisam avançar para que tragédias semelhantes não ocorram. Um deles é a fiscalização. Para Lima, a fiscalização continua sendo um ponto muito sério. “Esse não é um problema de incêndio. Existe no Brasil em várias áreas e é uma atividade que o Estado deve controlar”. Lin também alerta sobre a importância de evoluções na fiscalização. “Acredito que a fiscalização das edificações deve ser constante e buscar a conscientização dos responsáveis, usuários e proprietários das edificações. Devemos reverter o pensamento de que segurança contra incêndio é custo e não investimento”.
A especialização na área também é uma questão necessária, segundo os entrevistados. “Um fator que destaco é a questão da Engenharia de Segurança Contra Incêndio, um assunto multidisciplinar que exige cada vez mais profissionais e equipes que entendam sobre o comportamento do incêndio, seus efeitos e fenômenos, aliado aos sistemas de prevenção e combate e outros sistemas de uma edificação”, diz Lin. Lima afirma que a criação de um título no Brasil para Engenheiros de Segurança contra Incêndio é uma questão muito trabalhada pelo ISB. “Isso já existe em inúmeros países e não é novidade. Apesar de aqui no país haver uma oferta de cursos de especialização não existe esse ponto fundamental, legal, oficial da profissão. E não basta só uma especialização, um curso de seis meses que a pessoa faça. Os profissionais deveriam ter uma especialização completa e longa em Engenharia de Segurança Contra Incêndio. Para isso precisaríamos ter o apoio das entidades regulamentadoras para que criassem esse tipo de titulação”, diz o diretor do ISB.
A certificação no setor é outro ponto considerado frágil pelos especialistas. “Tem uma questão fundamental que ainda não foi tratada: a qualidade do equipamento que é instalado no Brasil. Isso é um ‘Calcanhar de Aquiles’ gravíssimo que temos porque não existe nenhum método de controle das autoridades competentes sobre isso. Eu posso instalar qualquer equipamento proveniente de qualquer origem, sem qualquer tipo de avaliação de qualidade, de confiabilidade. Em incêndio esse tipo de questão é muito importante, porque diferentemente de outro equipamento você não consegue ver o resultado imediato. Inclusive, o ISB já fez muita campanha pela certificação de produtos e equipamentos”, desabafa Lima. Para Diana, da ABSPk, a qualidade também é importante, mas também enfrenta alguns problemas. “Em se tratando de prevenção de incêndio os equipamentos devem ser sempre de boa qualidade e com certificação. Os próprios instaladores devem ter consciência de aplicar o melhor material e da melhor forma, ao invés do mais barato. Porém, a certificação de equipamentos é algo que ainda não está 100% no radar do bombeiro, em muitos casos ele não tem como exigir tal certificação”, revela.
Diana alerta ainda que as normas precisam continuar a serem revisadas. “A ABSpk está buscando cada vez mais o aprimoramento do setor e vislumbra que os sistemas de supressão por chuveiros automáticos, os sprinklers, sejam cada vez mais utilizados para contribuir na mitigação de tragédias ocasionadas por incêndios. Para isso contribuímos na revisão e elaboração de normas ABNT por meio do CB-024”, explica. De acordo com Lin, além de atender às regulamentações vigentes, que é o mínimo que se deve fazer, as empresas, seus investidores e responsáveis devem listar as consequências de cada incêndio e mitigar todos os riscos com ações que vão desde a capacitação e treinamentos ao uso de medidas de prevenção e proteção contra incêndios mais adequadas. “O problema é que muitos profissionais acreditam que trabalhar somente com os riscos de maior probabilidade resolve grande parte do problema”, diz.
Para Rosaria Ono, a chave para as mudanças está na sociedade. “Considero ser importante o trabalho desenvolvido por parte da sociedade, de não deixar as tragédias serem esquecidas, para que efetivamente não voltem a ocorrer com tanta frequência ou com o mesmo grau de gravidade. No Brasil, apesar de a área da Segurança Contra Incêndio ter evoluído nesta última década, em minha opinião, isso ocorre ainda de uma forma muito lenta e sem o reconhecimento e o apoio necessário da sociedade. Consta-se a ausência de políticas públicas, seja na conscientização do público sobre o perigo do incêndio à vida humana, seja na área da educação básica e também de formação profissional avançada, e também no desenvolvimento tecnológico de produtos e sistemas de proteção contra incêndio e à vida”, reflete.
PRODUÇÕES PARA A TV E EVENTOS MARCAM A DATA
As plataformas de streaming Netflix e Globoplay lançarão produções sobre a tragédia. A Netflix já divulgou o trailer da minissérie “Todo dia a mesma noite”, inspirada no incêndio. Com cinco episódios, a série será lançada na plataforma de streaming no dia 25 de janeiro, dois dias antes da tragédia completar dez anos.
O seriado foi embasado no livro “Todo dia a mesma noite: A história não contada da Boate Kiss”, escrito pela jornalista Daniela Arbex, e também em relatos e investigações deste incêndio que comoveu o país. Nele serão abordados os acontecimentos antes, durante e depois do desastre, bem como a luta dos amigos e familiares das vítimas por justiça.
Produzida pela Morena Filmes para a Netflix, a trama possui direção geral de Julia Rezende, direção de Carol Minêm e roteiro de Gustavo Lipsztein. O elenco é formado por Debora Lamm, Bianca Byington, Thelmo Fernandes, Leonardo Medeiros, Paulo Gorgulho, entre outros atores. Assista ao trailer em https://www.netflix.com/br/title/81218409. Já a Globoplay lança, no dia 26, a série documental “Boate Kiss – A Tragédia de Santa Maria”. A produção tem cinco episódios, é conduzida e dirigida pelo repórter da TV Globo, Marcelo Canellas, e tem como parceira a TV OVO, coletivo audiovisual de Santa Maria. Dez anos depois do incêndio, a série refaz, passo a passo, a sucessão de acontecimentos que levaram à morte de jovens, a dor das famílias e dos sobreviventes e o processo judicial, trazendo imagens inéditas.


EVENTO
A AVTSM (Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria), em conjunto com o Coletivo Kiss: Que Não Se Repita e o Eixo Kiss do Coletivo de Psicanálise de Santa Maria, preparou uma programação com diversos painéis de discussão e homenagens que irão acontecer na Praça Saldanha Marinho, no centro de Santa Maria, dos dias 25 a 28 de janeiro. A ideia é resgatar a memória e construir o futuro após dez anos do incêndio da boate Kiss. Um dos debates contará com a presença de Antonio Berto, pesquisador-chefe do Laboratório de Segurança ao Fogo e a Explosões no IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas) e Rogério Lin, superintendente do CB-024 (Comitê Brasileiro de Segurança Contra Incêndio) da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) e membro da ABPP (Associação Brasileira de Proteção Passiva Contra Incêndio) que abordarão o tema “ Por que prevenção vale a pena?”, no dia 27. Veja programação completa aqui:
A TRAGÉDIA
O incêndio na boate Kiss aconteceu na noite do dia 27 de janeiro de 2013, na cidade de Santa Maria, Rio Grande do Sul. No local estava ocorrendo uma festa universitária que contava com show da banda “Gurizada Fandangueira”. Durante a apresentação, a banda utilizou artefatos pirotécnicos no palco que entraram em contato com as espumas do isolamento acústico da casa noturna e deram início ao incêndio.
Por conta da fumaça tóxica que foi liberada e inalada pelos jovens e também pela falta de saídas de emergência da boate que estava superlotada, 242 jovens perderam a vida e 636 ficaram feridos. Emergência já dedicou duas reportagens especiais ao longo dos anos sobre a boate Kiss nas edições 47 e 58:


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