sábado, 14 de junho de 2025

Coluna APH – Ed. 131

RMC: Incertezas

Estava na ambulância, conversando com M, feminino, 78 anos, sobre as “reviravoltas da vida”, quando ela reclamou do “colchão” duro e referiu náusea. Ela sofreu uma queda e havia suspeita de fratura no fêmur. M foi encontrada consciente, sentada no chão e recebeu o protocolo completo de imobilização. No hospital, aguardamos duas horas pela avaliação, para liberação da prancha, colar cervical, headblock e, para finalmente, liberar M. do desconforto. Apenas uma pergunta vinha à cabeça: O que estamos esperando para mudar esta realidade?

Ao longo de nossa vida profissional, novos conhecimentos e novas evidências modificaram ou foram incorporadas a nossa prática profissional. Sou do tempo da RCP 5:1, já usei bicarbonato de sódio aberto, corri atrás do bretílio (sem sucesso!) e da vasopressina (sem necessidade!), o torniquete saiu e retornou aos protocolos civis, e, hoje, cuido para que o Ringer Lactato tenha uma velocidade de infusão adequada para atender às diretrizes da reposição permissiva.

Incorporamos rapidamente algumas modificações, exceto em relação às novas recomendações para a estabilização da coluna, chamada de RMC (Restrição de Movimento da Coluna). Seguimos acreditando que o uso universal, protocolar e robotizado do colar cervical e da prancha rígida, bem como de outros equipamentos, são o estado da arte na prevenção de lesão secundária da medula em traumatizados. Não são.

As lesões medulares são relativamente raras, porém suas consequências são severas para o indivíduo e para a sociedade. Parece óbvio pensar que, no APH, “é melhor prevenir do que remediar”. No entanto, os estudos mostram que algumas técnicas e equipamentos que utilizamos nas imobilizações, causam mais dano do que benefício, principalmente se mal utilizados e indicados.

Estudos vêm demonstrando que a imobilização da coluna com colar e prancha rígida está associada ao desenvolvimento de lesão por pressão, elevação da pressão craniana, risco de fraturas de coluna em idosos, ocorrência de agitação e broncoaspiração, exames radiológicos desnecessários, dificuldade na realização do exame físico e de intubação, aumento da mortalidade por trauma penetrante, e ainda, (ufa !!!) aumento do tempo de cena no APH e na sala de emergência no intra-hospitalar. Além disto, há evidências que já contraindicam o uso de técnicas como o uso de coletes imobilizadores, por produzirem mais risco de movimentação da coluna do que restrição.

Apesar desta grande lista de inconvenientes, a RMC não prega a aposentadoria do colar cervical, da prancha rígida e das técnicas de imobilização. Estados Unidos (2013,2014,2018) Alemanha (2016), Noruega (2017), África do Sul (2017) e Dinamarca (2019) já estabeleceram protocolos de RMC com uma abordagem mais seletiva dos pacientes traumatizados que receberão a restrição de movimento, com o uso de técnicas e equipamentos mais adequados e com um processo de tomada de decisão apoiado em ferramentas de triagem com critérios clínicos e de mecanismo de trauma, descartando de vez o processo robotizado de tomada de decisão.

Em 2018, o Comitê de Trauma do Colégio Americano de Cirurgiões, o Colégio Americano de Médicos de Emergência e a Associação Nacional de Médicos de Serviços de Emergência dos EUA, apoiados por outras entidades, apresentaram uma declaração de consenso sobre dez pontos relacionados à RMC que foi publicada no artigo de Fischer et al., 2018 (não deixe de ler!).  Desta declaração, pautada na combinação de evidências e opinião de especialistas, destaco quatro aspectos: a opção pelo termo RMC e não “Imobilização”; a orientação para o uso mais seletivo da prancha longa como ferramenta de transporte (e não de restrição); o incentivo ao uso da maca colher, da maca à vácuo e da própria maca da ambulância como agentes de restrição; e a lista de critérios para uso de técnicas de RMC, com a devida contraindicação em caso de trauma penetrante.

Volto à pergunta: o que nos impede de adotar a RMC e suas diretrizes? De colegas mais cautelosos escuto preocupações com a força das evidências dos estudos e os poucos países que aderiram. Estudos randomizados com alto nível de evidência são difíceis de executar no APH, por isto, consensos e revisões sistemáticas, como a de Maschmann et al., 2019, são frequentes. Entidades relevantes se dedicam a analisar e propor guidelines que vêm sendo incorporados aos programas PHTLS e ATLS em todo o mundo.

Dos apressados, que não vislumbram a complexidade do movimento necessário para a mudança, escuto palavras ásperas. É preciso ser cuidadoso, pois, as alterações envolvem a atenção pré e intra-hospitalar. São milhares de profissionais de saúde e bombeiros a serem treinados e precisamos decidir de forma uniforme como isto será feito. De entidades de classe, escuto preocupações com a grande responsabilidade que recairá sobre os profissionais do SBV (Suporte Básico de Vida) e sobre quem vai treiná-los. Este é um grande desafio. Como estabelecer uma ferramenta de triagem clínica em um modelo com cerca de 81,5% da força de trabalho composta por dois profissionais que não têm prerrogativas para fazer avaliação e tomar decisões? Dos instrutores, surgem as perguntas: Qual protocolo devo ensinar hoje? O protocolo vigente ou o do futuro? Parece fácil responder, mas penso: qual seria o protocolo do futuro? 

Nossos pacientes aguardam. Os custos em saúde crescem. O modelo pré-hospitalar está estagnado quali-quantitativamente. Precisamos de uma força-tarefa interdisciplinar, com entidades de classe, associações de especialistas, pesquisadores e gestores ligados à área de urgência, que discuta objetivamente as diretrizes de RMC e como elas serão implantadas em nosso modelo. Não é preciso fazer uma revolução. Podemos realizar uma implementação progressiva e cuidadosa, assim como já propõem alguns serviços em São Paulo e Rio de Janeiro. Precisamos olhar estas diferentes experiências de vanguarda, para aprender com elas. Sejamos rápidos, antes que M. tenha uma lesão por pressão.


Marisa Amaro Malvestio – Enfermeira, Mestre e Doutora em Enfermagem, ex-consultora técnica do Ministério da Saúde na área de APH.
malvestio.revistaemergencia@gmail.com

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